sábado, 1 de setembro de 2012

Testamento de Dom Oscar Romero

A MISSÃO DA IGREJA

Dom Oscar Romero, Arcebispo de El Salvador

Discurso proferido por Dom Oscar Romero, por ocasião do recebimento da homenagem de honra,  conferida pela Universidade de Lovaina, em 2 de fevereiro de 1980, a apenas 50 dias do seu assassinato. Considerado seu testamento teológico e político, este texto nos dá o essencial de sua leitura do Evangelho e de sua vida de fé.

                A essência da Igreja está na sua missão de serviço oferecido ao mundo, para salvá-lo em sua totalidade, para salvá-lo na história, aqui e agora. A Igreja existe para ser solidária com as esperanças e as alegrias, com o sofrimento e as tristezas dos homens. Como Jesus, a Igreja existe para “trazer a boa nova aos pobres, para curar os que têm o coração ferido, para buscar salvar o que estava perdido.” (cf. Lumen Gentium, n. 8). Para dizê-lo com uma palavra, que é capaz de reassumir e concretizar tudo. O mundo, que a Igreja é chamada a servir, é para nós o mundo dos pobres. O nosso mundo salvadorenho não é uma abstração, não é simplesmente um exemplo ulterior do que nos países desenvolvidos como o vosso se entende por “mundo”. É um mundo que é constituído, em sua imensa maioria, por homens e mulheres pobres. É justamente deste mundo que dizemos ser a chave para se compreender a fé cristã e o agir da Igreja, e ao mesmo tempo, a dimensão daquela fé e daquele agir eclesiais. Os pobres são aqueles que nos dizem o que é a “pólis”, a cidade, e o que significa, para a Igreja, viver realmente no mundo. Permiti-me, então, a partir dos pobres do meu povo, que eu aqui represento, explicar brevemente a situação e o agir de nossa Igreja. O fato de constatar essas realidades e de deixar-nos tocar por elas, longe de nos distanciar da nossa fé, nos remeteu de volta ao mundo dos pobres como nosso verdadeiro lugar, nos impulsionou a incarnar-nos, como primeiro passo, no mundo dos pobres. Nele encontramos os rostos de que nos fala Puebla (cf. nn. 31-39). Aí encontramos os agricultores sem terra e sem trabalho estável, sem água e sem luz em suas pobres habitações, sem assistência sanitária, quando as mães precisam dar à luz, e sem escola quando as crianças começam a crescer. Aí nos encontramos com os operários que se acham desprovidos de direitos sindicais, que são demitidos pelas fábricas tão logo reclamem seus direitos, ficando à mercê de cálculos frios da economia. Aí nos encontramos com as mães e com as esposas dos desaparecidos e dos presos políticos. Lá nos encontramos com os habitantes de casebres, cuja miséria supera toda imaginação, e que experimentam o insulto permanente representado pelas ricas habitações vizinhas às suas. É, porém, neste mundo sem rosto que se faz atual o sacramento do servo sofredor de Iaweh, no qual a Igreja de minha arquidiocese tem buscado incarnar-se. Não digo isto com espírito triunfalista, pois é claro o muito que ainda nos falta, quanto a um maior avanço nesta incarnação. Entretanto, lembro este fato com imensa alegria, porque ccumprimos o esforço de não passar adiante, de não passar ao largo do ferido encontrado ao longo da estrada, e dele nos aproximamos como o bom samaritano. Tal aproximação ao mundo dos pobres, a entendemos, ao mesmo tempo, como incarnação e como conversão. Este encontro com os pobres nos fez recuperar a verdade central do Evangelho, no qual a Palavra de Deus nos chama à conversão. A Igreja tem uma boa nova a anunciar aos pobres. Aquelas mesmas pessoas que, durante séculos, só escutaram notícias cativas e vivenciaram realidades ainda piores, agora, por meio da Igreja, estão escutando a Palavra de Jesus: “O Reino de Deus está perto.” (Mc 1, 15). “Felizes os pobres, porque deles é o Reino dos céus.” (cf. Mt 5, 3). E, a partir daí, têm uma boa nova para anunciar aos ricos: que eles se convertam ao pobre, com ele compartilhando os bens do Reino... É uma novidade, em nosso povo, que os pobres hoje vejam na Igreja uma fonte de esperança e um apoio dado à sua nobre luta de libertação. A esperança de que a Igreja apóie não é ingênua nem passiva. É, antes, um apelo que assume uma dimensão da mesma palavra de Deus, no sentido de que as maiorias pobres assumam sua própria responsabilidade, para que tomem consciência de sua própria situação, para que criem sua própria organização – e isto num país em que, com uma intensidade que pode ser ora maior, ora menor, tudo isto vem legalmente ou na prática proibido. É, no entanto, uma defesa, talvez até crítica, das suas justas causas e reivindicações.
A esperança que pregamos aos pobres é para que seja restituída sua dignidade, é para lhes dar a coragem de serem. eles mesmos, os autores de seu próprio destino. Em uma palavra, a Igreja não apenas voltou-se para o pobre, mas faz dele o destinatário privilegiado de sua missão, uma vez que, como recorda Puebla, “Deus toma sua defesa e os ama.” (n. 1142). A Igreja não só se incarnou no mundo dos pobres, dando-lhes uma esperança, mas se acha firmemente empenhada em sua defesa. As maiorias pobres de nossa nação são cotidianamente oprimidas e reprimidas pelas estruturas econômicas e políticas do nosso país. Entre nós, continuam sendo verdadeiras as terríveis palavras dos profetas de Israel. Entre nós, são tantos os que vendem o justo por uma moeda e o pobre por um par de sandálias (cf. Am 2,6), quantos são os que acumulam violência e rapina em seus palácios (cf. Am 3,10): quantos esmagam os pobres (cf. Am 4, 1); quantos apressam o reino da violência, deitados em leitos de marfim (cf. Am 6, 3-4); quantos ajuntam casa sobre casa e anexam campo a campo, até ficarem sozinhos na terra (cf. Is 5, 8). Estes textos dos profetas Amós e Isaías não são vozes distantes de muitos séculos, não são apenas textos que lemos com reverência na liturgia. São realidade cotidiana, cuja crueldade e intensidade experimentamos a cada dia. Esta defesa dos pobres, num mundo gravemente conflitivo, provocou algo de novo na história recente de nossa Igreja: a perseguição. Vós já conheceis os dados mais importantes. Em menos de três anos, mais de cinqüenta sacerdotes foram atacados, ameaçados, caluniados. Seis deles já são mártires, assassinados, vários outros foram torturados e alguns expulsos. Até as religiosas têm sido alvo de perseguição. A emissora do arcebispado bem como outras instituições educacionais católicas e de inspiração cristã têm sido todas constantemente atacadas e ameaçadas, e artifícios mortais têm sido explodidos contra as mesmas, com propósito de intimidação. Numerosas casas paroquiais foram investigadas... Um fato é certo: que nossa Igreja vem sendo perseguida, nos últimos três anos. Mas, ainda mais importante é considerar as razões por que ela vem sendo perseguida. Não foi perseguido um sacerdote qualquer, nem tem sido atacada uma instituição qualquer. Tem sido perseguida e atacada aquela parte da Igreja que se pôs ao lado do povo pobre e se levantou em sua defesa. E, de novo, encontramos nesses fatos a chave que nos permite compreender a perseguição da Igreja: os pobres. São, de novo, os pobres que nos fazem entender o que realmente aconteceu. E ´por isso, a Igreja começou a compreender a perseguição justamente a partir dos pobres. A perseguição foi provocada pela defesa dos pobresx e ela não tem feito nada mais do que cuidar do destino dos pobres. A verdadeira perseguição foi dirigida ao povo pobre que hoje é o corpo de Cristo na história. Estes são os que completam em seu corpo o que falta à paixão de Cristo. E também é por esta razão que a Igreja, uma vez que escolheu organizar-se e reunir-se em nome das esperanças e do sofrimento dos pobres, foi ao encontro da mesma sorte de Jesus e dos pobres: a perseguição...  Esta opção pelos pobres é o que explica a dimensão política de sua fé. Como algo que está nas próprias raízes e nos próprios traços fundamentais. E porque ela fez opção pelos pobres concretos e não imaginários, e porque fez opção pelos verdadeiros oprimidos e verdadeiros reprimidos, que agora a Igreja vive no mundo da esfera política, e que ela se realiza, como Igreja, inclusive através dessa esfera. Por outro lado, não poderia ser diferente, se, como Jesus, se dirige em direção aos pobres. Mais. No curso deste processo que levou a Igreja a tomar posição diante da concreta e real situação sócio-política, a mesma foi se aprofundando, o próprio Evangelho foi mostrando a mesma riqueza. E assim, em primeiro lugar, sabemos melhor que assim é o pecado. Sabemos que a ofensa dirigida a Deus é a morte do homem. Sabemos que o pecado é realmente mortal, e não simplesmente pela morte interior de quem o comete, mas também pela morte física e objetiva que produz. Desse modo, fazemos memória do que é o dado profundo de nossa fé cristã. Pecado é o que obteve a morte ao Filho de Deus. Esta verdade fundamental da fé cristã – nós a vemos a cada dia nas situações do nosso país. Não se pode ofender a Deus, sem ofender o irmão. É a pior ofensa a Deus, o pior dos secularismos é, como já o disse um dos nossos teólogos, “o transformar os filhos de Deus, templos do Espirito Santo, o corpo histórico de Cristo, em vítimas da opressão e da injustiça, em escravos de apetites econômicos, em objetos descartáveis da repressão política; o pior dos secularismos é a negação da graça através do pecado, é a objetivação deste mundo como presença operante das potências do mal, como presença visível da negação.” (p. 1, Ellacuría). Por isso denunciamos a idolatria que, no nosso país, se faz da riqueza, da propriedade privada absolutizada no sistema capitalista, do poder político nos regimes de segurança nacional, em nome dos quais se institucionaliza a insegurança dos indivíduos (Quarta Carta Pastoral, nn. 43-48)... Em segundo lugar, agora sabemos melhor o que significa incarnação, o que significa Jesus haver assumido uma carne realmente humana, e ter-se Ele feito solidário com seus irmãos no sofrimento, nos prantos e lamentos, na oferta. Sabemos que não se trata diretamente de uma incarnação universal, que é algo impossível, mas de uma incarnação preferencial e parcial: uma incarnação no mundo dos pobres. É a partir deles que a Igreja poderá ser para todos, que a Igreja poderá prestar também um serviço aos poderosos, através de uma pastoral de conversão; mas, não vice-versa, como tantas vezes é entendido. O mundo dos pobres, com características sociais e políticas bastante concretas, nos ensina onde é que a Igreja deve incarnar-se, para evitar aquela falsa universalização, que acaba sempre por transformar-se em conivência com os poderosos. O mundo dos pobres nos ensina como deve ser o amor cristão que por certo busca a paz, mas também desmascara o falso pacifismo, a resignação e a inação que deve ser certamente gratuito, mas também deve procurar a eficácia histórica. O mundo dos pobres também nos ensina que a natureza sublime do amor cristão deve passar pela imperiosa necessidade de um empenho para que justiça se faça às maiorias, sem se fugir à luta honesta. O mundo dos pobres nos ensina que a libertação chegará, não no dia em que os pobres forem meros destinatários de benefícios prestados pelos governos e pela própria Igreja, mas no dia em que eles se tornarem, na primeira pessoa, atores e protagonistas da própria luta e de sua própria libertação, desmascarando de tal modo a raiz última dos falsos paternalismos, inclusive os eclesiais. O mundo concreto dos pobres nos ensina também em que consiste a esperança cristã. A Igreja prega novos céus e nova terra, e sabe que nenhuma configuração sócio-política pode vir trocada pela plenitude final que somente Deus concede. Mas, a Igreja também aprendeu como a esperança transcendente deve conservar nos sinais da esperança histórica, por quanto se trate de sinais tão simples, na forma de sua presença, como são aqueles proclamados no “Terceiro Isaías”, quando diz: “Construirão casas e nelas habitarão; plantarão vinhas, e comerão do seu fruto.” (Is 65, 21)... A fé é aquela que brota, num primeiro momento, para incarnar-se no mundo sócio-político dos pobres, e para encorajar os processos de libertação, que também são sócio-políticos. E esta incarnação e esta práxis, por sua vez, dão concretude aos elementos fundamentais da fé... Antes que fornecer-vos uma análise detalhada de todas as oscilações da política do meu país, preferi explicar-vos quais são as raízes profundas da ação da Igreja neste mundo tão explosivo que é o mundo sócio-político, e tentar ilustrar-vos, falando-vos do mundo dos pobres, que é o critério último – teológico e ao mesmo tempo histórico – que, neste campo, guia a ação eclesial. A segunda atitude que assume, nos confrontos no mundo dos pobres, nos confrontos do povo pobre, a Igreja, a partir de sua própria especificidade, acaba ou por sustentar ou um ou outro projeto político. Acreditamos que esta seja a maneira com que conservar a identidade e a mesma transcendência da Igreja. Inserir-nos no concreto processo sócio-político do nosso povo, julgá-lo a partir do povo pobre e promover todos os movimentos de libertação que conduzam realmente a que as maiorias gozem de justiça e paz. E acreditamos ser este o modo pelo qual conservar a transcendência e a identidade da Igreja, porque é deste modo que conservamos a fé em Deus. Os cristãos do tempo antigo diziam: “Gloria Dei, vivens homo.” (A glória de Deus é o homem vivo.). Nós podemos reformular, em termos mais concretos, este conceito, afirmando: “Gloria Dei, vivens pauper.” (“A glória de Deus é que o pobre viva.”). Cremos que, a partir da transcendência do Evangelho, nós possamos julgar em que consiste a vida dos pobres, e cremos também que, pondo-nos ao lado do povo, e buscando dar-lhe vida, conseguimos saber em que consiste realmente a eterna verdade do Evangelho.

(Trad. da versão italiana: Alder Júlio F. Calado)
Outubro/2010

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